O Pedido

Publicado: 14 de setembro de 2010 em Contos

“O Pedido” por Fabiano “chikago” Saccol

 “Por favor, sente-se e fique a vontade, seu pedido vai demorar um pouco para ser atendido”- a voz metálica, cujo rosto era de uma mulher sintética, ecoava no salão quase vazio. Olhei para o sofá amarelo na parede e fui sentar, pensando em como o tempo passa rápido. Atendentes virtuais. Acabou-se o emprego das telefonistas e das secretárias, hoje quem atende são máquinas em uma tela de computador, ou como a que falou comigo, uma cabeça robótica com pele sintética.

 Olhei o relógio na parede, era perto do meio dia. O sol batia forte do lado de fora, e mesmo com a poluição que tapava a cidade com a cor cinza, o brilho amarelo ricocheteava nos vidros dos automóveis que cruzavam a avenida e iluminavam a sala na esquina em que eu me encontrava. Uma sala simples, não maior que quatro por quatro, que abrigava um balcão ocupado por uma sintética*, uma planta que mais parecia uma borracha do que uma planta, uma mesinha de vidro e o dito sofá amarelo, onde eu estava esborrachado. A porta de vidro minha direita dava para a rua, e a porta de metal minha esquerda ia para o interior da drogaria. Uma câmera acima da sintética, e a porta de metal reforçado me diziam que o dono dali tinha muito cuidado com seus pertences. O que não era de se admirar, pelo estado do bairro lá fora.

 Eu estava ali de passagem. Um evento Internacional sediado em São Paulo. Pessoas de todo o mundo estiveram ali no final de semana para discutir sobre Psiquiatria. No fim das contas, a mesma merda de sempre, para eles as drogas são a solução para tudo. Nada de novo no reino da psicolândia. A única coisa que teria feito meu final de semana foi aquela ideia de máquina dos sonhos. Fui la apenas por isso. Se funcionasse, seria a minha passagem para o topo… Olhei para a sintética. Os olhos verdes artificiais me olharam de volta, com a profundidade de uma poça d´água e a frieza de um iceberg. Odeio essas latas. Lá fora, ouço o barulho de uma batida de carros. Freada, choque, porta abrindo. Nada mais comum. Abri minha mochila e achei meu netbook dentro, e no momento que eu puxo ele, a Sintética vira-se para mim com aquela voz metálica – “Temos as últimas edições dos jornais e revistas na nossa wlan, fique a vontade, seu pedido vai demorar mais um pouco para ser atendido.” – após isso, ela volta novamente a cabeça para encarar a porta de vidro.

 Enquanto o Netbook carrega a Wlan da drogaria, eu ouço uma acalorada discussão lá fora. Provavelmente os da batida. Daqui a pouco começa a briga, e quem sabe, o tiroteio. As pessoas cada vez mais ficam sem noção da violência que causam. Antigamente se acontecia uma briga era algo incomum. Hoje, se não morrer um, incomum. Parece que ficamos acostumados com a violência. Na 3DTV passa todos os dias quantos morreram e quantos mataram pelo mundo, noticias bizarras  que, se antigamente nos apavorava, hoje é trivial.

 “Morreram dezenas em deslizamentos”- Todos os meses.
 “Bala perdida mata criança”- toda a semana.
 “Jovem confundido com traficante é morto”- todos os dias. Nada mais nos choca. Estamos acostumados.

 A discussão fora continua. Parece que ninguém morreu até agora, mas mais vozes se juntam a discussão. Nem perco tempo para olhar. O Netbook carrega as noticias e jornais do dia. Meus olhos doem quando eu começo a ler. Vista cansada, acho. Ler todos os dias vai acabando com a vista. Eu aumento a resolução para reduzir o esforço. As noticias são as mesmas de sempre:

 “Corrupção Esquerdista acaba em pizza!”
 “Esquema de corrupção da Direita”
 “Homem morto em quarto de hotel”
 “Protesto de estudantes acaba com 60 feridos e 12 mortos”
 “Criança mata outra com a arma do pai”

 O de sempre. Coisas que não nos importam, pois não podemos mudá-las, mas a mídia distribui como coisas importantíssimas. Como jogar moedas para os pombos comerem.

 Minha mente volta para ontem, para a máquina dos sonhos. Um conceito simples, mas muito eficiente. Se a mente como um Drive, ela pode ser acessada externamente. Um simulador virtual simples, que conecta o paciente e o médico. Ali ele conseguiria acessar o centro do problema do paciente, e, segundo o criador, talvez mexer na memória dele, como se fosse uma cirurgia, como se removesse um câncer. Eu até sentei naquela merda, e a única coisa que vi foi o idiota ligando a máquina e dizendo “OOPS, acho que deu um bug no Sistema Operacional, desculpe”. Perda de tempo. Fecho as notícias e começo a mexer no netbook. Na pasta de fotos, estão minhas fotos do evento. Começo a olhá-las. A entrada do Evento, Os estandes, a praça de alimentação, algumas mulheres bonitas comendo, o telão com propagandas, mais mulheres, mais estandes, a máquina dos sonhos mais fotos da máquina dos sonhos… até que uma coisa me chama a atenção. Na foto última foto, um sujeito esquisito olhando para mim, cabelo preto, óculos redondos, relógio dourado. Alguma coisa na minha mente estala. Eu volto algumas fotos ata praça de alimentação. Na mesa ao lado das meninas, o mesmo sujeito. Meu coração começa a bater mais forte, e a cada foto que eu passo, lá está ele. Me olhando. Me analisando. O cara com os óculos redondos e relógio de ouro. Quem esse cara? Minha boca fica seca, enquanto eu continuo encarando aquelas fotos, aquele homem. Quem ele? O que ele quer comigo? Alguma coisa no canto do meu olho me chama a atenção, dentro da minha mochila.  Eu boto a mão nela, e pego o crachá de entrada do evento, mas o que chama a atenção é um pendrive que estava pendurado na corda do crachá. Um pendrive na forma de um cachorro cinza com algumas marcas de uso.

 Mais o mais importante, é que aquele pendrive não é meu.

 Começo a ouvir o barulho de sirenes lá fora e o burburinho parece que diminui. A polícia deve estar chegando pra acalmar os ânimos dos idiotas que bateram os carros. Provavelmente eles vão chegar, botar respeito, dar uns tapas, pegar uma propina do mais otário, ou dos dois otários e cair fora. Nada mais do que estamos acostumados. A diferença entre a polícia e os bandidos é o distintivo. Cada um joga como pode, e os policiais estão no campo. Se o cara não é corrupto, ou morre de bala, ou morre de fome. E o mais engraçado é que os bandidos também tem apenas essas opções.

 Eu olho para a sintética novamente, mas desta vez ela não em olha de volta. Coço a cabeça e lembro da pendrive na minha mão. O sistema dá um aviso que tem que instalar a pendrive, e alguns instantes depois, abre a pasta. Por alguns instantes meus olhos arregalados congelam naquela janela, meu cérebro tentando processar o que vê. Três Pastas. Fotos, Máquina dos Sonhos e Márcio Pereira. O que meu nome fazia naquele pendrive? Eu abro a pasta com meu nome, meu coração acelerado batendo no meu externo como se fosse um martelo. Naquela pasta, um arquivo:

 “Relatório Médico 55489.PDF”

 Eu jsabia o que tinha naquele arquivo. Era meu arquivo médico, o arquivo do meu psiquiatra. Minhas conversas, meus problemas, meus erros, meus sintomas. O espelho do meu problema. O coração já é uma uma marreta, um bate estaca no meu peito, a boca, que jestava seca, agora um deserto. Eu volto uma pasta. Fotos. 10 fotos. Todas minhas, ou melhor, eu estou em todas. Eu olhando uma estande, eu almoçando. Eu conversando com uma moça. Na penúltima foto, eu mexendo na máquina dos sonhos e conversando com o idiota, dono da máquina. Nesta foto, um detalhe salta na tela. A pessoa que bateu a foto colocou o relógio no lado para mostrar as horas.

Um relógio dourado.

 Por que aquele cara  estava me observando? O que meu relatório médico fazia na mão dele? Por que a pendrive estava na minha mochila? Minha mão, já tremendo, clica para ver a última foto. A mesma foto minha na máquina Não, não é a mesma. Eu volto na foto anterior. O relógio marca 12:45, e na última, 15:55. Como assim? Eu fiquei menos de dez minutos naquela estande. Minha cabeça lateja, como se o bate estaca do coração resolvesse bater na minha testa. Como as fotos mostram que eu fiquei três horas? Minha cabeça dói mais ainda. O que estava acontecendo? Neste momento, a sintética vira para mim e começa a falar:

– “Senhor, houve um problema com o seu pedido de thorazina.”

– “Como assim?”- Eu respondo meio grogue. – “Ele não está pronto?” -eu questiono.
– “Sim senhor, ele está pronto.” – ela responde. Mas como se houvesse malícia naquela voz metálica, ela completa “Mas o pedido é para o senhor Márcio Pereira.”
– “Sim, eu sei, sou eu.”
– Os olhos da sintética brilham como se uma faísca de maldade rompesse por aqueles olhos -“Segundo o relatório 55/48-9 da Polícia de São Paulo, Márcio Pereira morreu ontem a noite, 21:45 no hotel que estava hospedado. Um homem caucasiano, cabelo preto, usando óculos e não identificado , saiu do quarto dele as 21:50 carregando a mochila do morto”. A voz fria me responde, como se estivesse sorrindo. “Peço que o senhor largue a mochila, e saia pela porta da frente com as mãos para cima, que a polícia está lá fora lhe aguardando.”
 
 Sem aviso, três policiais entram na sala e me agarram. Dois deles me seguram pelos braços e cabeça e me jogam no chão, de costas. Eu tento me soltar mas eles são bem mais fortes.

– “caras, me larguem, o que é isso!” – eu grito, mas em vão. Um deles me dá um soco na cara, e agarra meus braços colocando algemas. “cala a boca, matador” – O terceiro fala, enquanto pega as minhas coisas. Eles me seguram pelos braços e me arrastam para fora. Lá, 2 carros de polícia, e mais uma multidão está me esperando. Fotos são tiradas, pessoas gritam, enquanto eles me carregam para a viatura. Quando me atiram lá dentro, eu ouço o terceiro guarda falando com o que estava lá fora esperando: “Ele estava com a mochila do morto. Aqui dentro tem uns cds, um netbook, Um óculos e um relógio de ouro sujo de sangue enrolado em uma camiseta.”

 Eu sou levado para a cadeia como assassino. Me atiram em uma cela, e alguns meses depois eu sou julgado. Dizem que meu nome é Carlos, que eu matei o Márcio para pegar a receita dele de thorazina. Histeria, alucinações, doença mental. Pedi para mostrar minhas fotos, para mostrar o cara de óculos redondos me seguindo. Ninguém deu bola. Meu advogado, um defensor público, mal perguntou meu nome e olhou minha cara. Me chamaram de maluco. Sou considerado culpado de assassinato premeditado. 20 anos. Colocaram-me em uma instituição para doentes mentais. Ninguém veio falar comigo. Nenhum amigo, nenhum parente.

 Mas eu sei quem eu sou. O que eu não sei é o que aconteceu naquele domingo. Naquela máquina. Quem é o cara de óculos redondos? E o Carlos? São a mesma pessoa? Por que dizem que eu sou ele? Porque o relógio dele estava na minha mochila? Porque eu fiquei 3 horas naquela máquina. Eu não sei. Mas eu preciso descobrir, ou não me chamo Márcio.

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