Uma mulher morena

Publicado: 18 de julho de 2018 em Uncategorized

Do alto de seu sapato e orgulho, ela caminhava. O vento forte dançava com seus negros cabelos, como se enroscados em uma milonga triste, mas arredia. Ao longe o barulho de carros e trânsito gritava a plenos pulmões, indicando a hora do rush. Mas dentro do parque, ela estava longe dessas incomodações. O que lhe incomodava estava dentro dela, rosnando dentro de seu coração, grunhido sentenças proféticas que abalavam aquela mulher morena.

Eis que assim, seu semblante mudara. Mulher que sempre teve um sorriso largo, que ria da vida, agora tinha os lábios cerrados como uma porta fechada. Ou um baú, que esconde segredos que não podem ser libertados para o mundo, pois assim teriam forma. Já bastava a forma em sua cabeça,
ela não precisava torná-los reais.

Por fim, como se acordasse de um transe, ela para. Então, lentamente sobe as escadas de seu prédio, indo para seu apartamento. A Milonga termina, deixando seus cabelos parados, como se abandonados pelo parceiro no meio do salão. Girando a maçaneta, ela é envolvida pela escuridão. Sombras projetadas pela luz da janela mostravam seu apartamento, limpo, impecável. Um sofá escuro tomava um dos cantos, sua poltrona preferida em outro. Ela não tinha Televisão. Sempre achou que era bobagem, pois preferia ir ao cinema, ou até usar seu notebook para assistir algo quando quisesse escapar da sórdida realidade que vivemos. Na mesa de centro, um vaso de orquídeas brancas, e um bilhete rasgado, um invasor em seu castelo, sua fortaleza da solidão.

Na penumbra ela caminha, agora lentamente, indo em direção ao sofá, deixando sua bolsa nele, como se jogasse fora um peso da alma. Ela olha as flores e suspira, balançando a cabeça, como se aquele triste ser vivo
enclausurado na terra estivesse conspirando com seus pensamentos para feri-la ainda mais. Virando de costas para esse assediador de ideias, ela abre a janela. O lusco-fusco invade sua casa, expulsando a penumbra e trazendo o cheiro calmante de camomila e erva cidreira, plantadas em sua janela. Ela se permite aspirar lentamente, como se a fragrância que entrava em seu corpo pudesse acalmar a balbúrdia que ela estava por dentro. Seus negros cabelos reencontram seu parceiro de dança, e a Milonga recomeça, agora mais lenta e sofrida.

Caminhando para a cozinha, ela toma nas mãos uma garrafa de 8 Ríos Cabernet Sauvignon, seu vinho preferido. Ela gentilmente abre a garrafa, suas ágeis mãos de finos dedos saboreando o toque do vidro cujo conteúdo, seria seu confidente esta noite. Ela serve uma taça, que já estava pronta sobre o balcão, como o soldado que passou o dia de prontidão, esperando o momento o momento que seu capitão dará uma ordem. E ordem dada é ordem cumprida. O líquido carmim jorra para o copo, enchendo-o, e sangrando parte do conteúdo da garrafa. Ah, se pudesse ser tão fácil assim com o coração dela, sair tudo de ruim que está ali dentro, copo por copo. Mas não, para aquela mulher morena, o sangramento é lento. Cada gota sai como uma farpa.

Lentamente, ela se senta em sua poltrona favorita, uma poltrona vermelha, macia, perfeita para descansar seu corpo, macerado pelo trabalho do dia. A taça na mão roga pra ser usada, e seu corpo obedece, ansiando pelo conforto do gosto inebriante que somente aquele vinho tinha. Ele adentra
delicadamente por entre os lábios dela, sorvendo um pensamento que tentara se formar quando os olhos dera pousaram sobre o bilhete rasgado. Ele continua a penetração naquele corpo, passando pela língua copiosamente, afagando-a com seu toque, ate por fim, descer para o fundo, agarrando qualquer mágoa que pudesse achar. A mulher morena esboça um sorriso.

Seus olhos de cigana obliqua e dissimulada disparam confidencias para a taça, sem esperar resposta. Sua mágoa, enclausurada em correntes de orgulho e confiança escapa, latindo e vociferando dores e medos. Ela sorve outro gole para tentar segurá-las, mas, no processo, um grito em forma de lágrima escapa de seu olho esquerdo. O vinho não fez o seu trabalho, alguém poderia pensar, mas ele sabe o que está fazendo. Logo mais uma lágrima escapa enquanto aqueles lindos olhos daquela mulher morena desabam em uma cachoeira de dor, medo, mágoa e arrependimento. É, o vinho sabe fazer seu trabalho.

Ela passa seus finos dedos por entre seu cabelo, e remove ele de perto de seus olhos, dois lagos profundos machucados pelas farpas que saiam por ali. Quando a taça jaz, por fim, drenada de todo seu conteúdo, ela termina de se entregar ao que ela sabia que sentia. O choro passa, como se soubesse que não precisa cortar o que já está completamente rasgado. A Mulher morena se põe de pé, e abrindo sua bolsa, tira de dentro um celular. Seus dedos, molhados e tremelicando dedilham pela tela, em um transe silencioso e ardido. Por fim ela solta o celular no sofá.

Na tela, uma única mensagem enviada.

“Ainda te amo…”

Do outro lado da cidade, em meio a um bosque altivo e silencioso, um celular não vibra.Desligado e dentro de um bolso qualquer, não pode avisar seu dono que tem um recado. E tampouco seu dono a leria, pois, cercado de terra e abaixo de 7 palmos, ele nunca saberá que ainda o ama, uma mulher morena.

Fabiano “Chikago” Saccol , criado em 12/12/2017

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